Capítulo – O Silêncio que Segue a Tempestade
O palácio começava a retomar a vida, com o som das criadas arrumando os corredores e os servos preparando as refeições. No entanto, uma estranha tensão ainda pairava no ar. Cada passo dado por Kátyra ecoava pelas paredes como se o próprio palácio estivesse ciente da mudança.
Foi no corredor do norte, onde os espelhos antigos repousavam, que algo incomum começou a acontecer.
Primeiro, um som abafado.
Crack.
A trinca apareceu em um espelho de moldura dourada, o reflexo de Kátyra e Dimitry distorcendo como se algo estivesse tentando sair de dentro.
— O que foi isso? — Dimitry se aproximou, franzindo a testa. O brilho da luz da manhã refletia nas trincas como se o vidro estivesse... respirando.
Mas antes que pudesse fazer algo, o som se repetiu, mais forte.
Crack.
Outro espelho, mais à frente. E depois mais um. Cada um rachando, trincando e distorcendo a imagem refletida, como se os próprios reflexos de vida estivessem sendo sugados por uma força invisível.
Kátyra deu um passo atrás, sentindo um arrepio em sua espinha. Ela não entendia. Não havia explicação lógica.
Os espelhos eram antigos, com décadas, talvez séculos de história. Eles eram mais do que simples decoração — eram guardiões de memórias antigas. Mas agora, pareciam ter vida própria, reagindo a algo que ainda não compreendiam.
— O que está acontecendo com esses espelhos? — Dimitry questionou, olhando para Kátyra, como se ela tivesse a resposta.
Ela estava hipnotizada, seus olhos fixos no espelho à sua frente, onde a rachadura agora se espalhava como uma rede de aranhas.
— Não é possível... — Kátyra murmurou, sua voz tremendo. — Eles... eles estão tentando nos mostrar algo. Mas o quê?
De repente, o maior espelho, um imenso painel decorado com runas antigas, que estava no centro do corredor, estalou com uma força inesperada.
CRACK!
A superfície do vidro se quebrou, mas não se despedaçou. Ao invés disso, a rachadura se expandiu até preencher toda a superfície, formando uma abertura no reflexo.
E então, do outro lado, uma imagem apareceu.
Primeiro, uma sombra. Escura, rastejante, impossível de ser identificada. Mas algo mais... o brilho dos olhos. Um par de olhos brilhando em vermelho intenso.
Kátyra deu um passo hesitante, aproximando-se da abertura.
— O que é isso? — sussurrou ela, sem conseguir desviar o olhar.
Dimitry, com um gesto, tentou afastá-la, mas os olhos dela estavam fixos no reflexo.
De repente, os olhos se moveram. E uma voz suave, mas cheia de poder, soou do outro lado, atravessando o vidro quebrado como se ele não existisse.
— O fim ainda não chegou, Kátyra.
Kátyra engasgou. O fim?
Ela se afastou rapidamente, o coração batendo descontroladamente.
— Pai... o que significa isso? — perguntou, sua voz falhando.
Dimitry observava com um olhar sombrio, os músculos tensos.
— Não sei, filha. Mas isto... não é normal. Esses espelhos nunca fizeram isso.
O silêncio que se seguiu foi pesado. O reflexo, agora fraturado, ainda tremia levemente, como se aguardasse algo.
Kátyra sabia que não era apenas um presságio. Era uma advertência.
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A grande celebração.
Enquanto os espelhos rachavam e as sombras se aproximavam das mentes inquietas de Kátyra e Dimitry, algo dentro do rei despertava, algo que não podia esperar. Ele sabia que o peso da guerra e da batalha ainda estava fresco, mas o povo precisava de algo mais. Algo que fosse além de luto e medo.
Dimitry deu um passo firme, afastando-se dos espelhos quebrados, e olhou para Kátyra com um semblante resoluto. Ele não estava apenas buscando uma solução para o caos, mas também para a alma de seu reino. O momento exigia algo grandioso, algo que devolvesse ao povo a esperança.
— É hora de renascer. — Ele declarou com firmeza, mais para si mesmo do que para Kátyra.
Em um ato impetuoso, mandou convocar uma reunião com os conselheiros reais. Dentro da grande sala do trono, suas palavras ecoaram por toda a câmara.
— Proponho que decretamos três dias de festa e celebração. Não importa o que aconteça, este reino precisará de momentos de alívio. Quero ver risos, cores, músicas, famílias unidas. Nada de transporte, nada de carruagens. Quero as ruas tomadas de flores e vida. — Dimitry se virou para os conselheiros, o olhar firme. — Que se distribua doces, que toquem músicas nos becos e praças. Que todos se lembrem do que é viver!
Os conselheiros murmuraram entre si, surpresos pela decisão, mas o rei continuou com a certeza de quem sabia o que precisava ser feito.
— O povo precisa de leveza. Que a vida floresça, mesmo em tempos sombrios. — Ele concluiu, a voz firme, como um comando. E a festa seria proclamada.
Quando a notícia se espalhou pelos portões da cidade, um alvoroço tomou conta das ruas. As famílias começaram a sair de suas casas, as crianças corriam de mãos dadas, os mercados foram coloridos com flores e lanternas brilhantes, e os sons de música clássica e danças populares se misturavam, ecoando pelas vielas.
Nos jardins e praças, crianças brincavam, seus risos enchendo o ar, e os velhos, com as rugas no rosto e olhos cansados, se permitiram sorrir, abraçando os pequenos que corriam em círculos. A cidade se tornou um mosaico de cores, de alegria pura, como se a terra sob os pés tivesse renascido, exatamente quando o povo mais precisou.
Dimitry caminhava pelas ruas, vendo o brilho nos olhos das pessoas. As tensões da guerra, ainda tão frescas, pareciam desaparecer naquele momento, dissolvidas nas risadas e nas conversas alegres.
Kátyra, ao lado de seu pai, observava a festa com um sorriso sutil, um sorriso raro em seus lábios, enquanto as ruas se enchiam de felicidade.
A noite chegou e os festejos não cessaram. As velas tremeluziam nas janelas, as bandeiras com o brasão dos Ursos flutuavam ao vento, e os sons das flautas e tamborins chamavam os corações para dançar. As ruas estavam cheias de vida, os corpos se moviam em sintonia, as famílias se reuniam ao redor de fogueiras improvisadas, compartilhando histórias antigas e criando novas.
E enquanto o brilho das estrelas refletia nas ruas coloridas e cheias de flores, Dimitry, de olhos fechados, parecia respirar mais leve, como se o peso da coroa tivesse desaparecido por um breve momento. Ele sabia que, por mais que a batalha não tivesse acabado, aquele pequeno intervalo de paz tinha o poder de reconstruir o que a guerra quase destruiu: a esperança.