"Algumas portas se abrem com chaves. Outras com sacrifícios."— Fragmento das Crônicas de Aedryn
O caminho até a Porta Final começava no vale onde o próprio tempo parecia hesitar. Um lugar que até os mapas de Saen marcavam apenas com silêncio. Ali, árvores tinham galhos voltados para o chão, e o vento sussurrava nomes esquecidos.
Rayn sentia o anel vibrar a cada passo. Como se soubesse que se aproximava de algo antigo, imenso… e errado.
— Isso aqui era um santuário — disse Saen, examinando as runas que cobriam o chão de pedra. — Antes da queda da Primeira Ordem. Aqui, eles guardavam os últimos fragmentos do mundo anterior.
— Que mundo era esse? — perguntou Liora.
— Um onde os Guardiões eram muitos. E erraram em uníssono.
Eles seguiram até uma grande muralha natural. E ali, cravada entre raízes negras e pedra úmida, estava a Porta.
Não era feita de metal. Era de osso esculpido, pulsando como se respirasse. Ranhuras corriam em padrões que lembravam costelas humanas. No centro, uma fenda estreita, como um olho fechado.
— Isso não é magia normal — murmurou Rayn.
— Porque não foi feita com magia — respondeu Saen. — Foi feita com lembrança. Cada fragmento dessa porta... é uma memória de dor.
Liora se aproximou, tocando a superfície com a ponta dos dedos. Retrucou com sarcasmo, mas sua voz soou vacilante:
— E como se abre uma porta feita de sofrimento?
Saen respondeu sem hesitar:
— Com mais sofrimento.
Enquanto Saen preparava um ritual para tentar ativar o selo, Rayn e Liora se afastaram por alguns minutos. O silêncio entre eles não era incômodo, mas carregado.
— Você confia nela? — Rayn perguntou, encarando o céu sem estrelas.
Liora suspirou.
— Confio que ela quer evitar o fim do mundo. Só não confio nos meios.
— Parece que ela já esteve aqui antes.
— Parece que ela guarda mais segredos do que você pode carregar.
Rayn a observou em silêncio. Viu o jeito como seus olhos vagavam, inquietos. Ela parecia mais tensa do que o normal.
— E você? — ele perguntou. — Por que ainda está aqui?
Liora arqueou uma sobrancelha.
— Você quer que eu vá?
— Não. Só quero entender.
Ela hesitou, como se segurasse algo que não queria admitir.
— Porque... alguém precisa estar aqui se você cair. E, sinceramente? Acho que você ainda vai cair.
Rayn não respondeu. Mas quando ela se afastou, ele percebeu que aquelas palavras — duras, frias — haviam sido, na verdade, as mais cuidadosas que já recebera.
O ritual começou com um círculo de cinzas e fragmentos de pedra das ruínas ao redor. Saen murmurava em uma língua que não era mais falada, com as mãos estendidas para a fenda da porta.
Então, de repente... um grito.
A porta chorou.
Não um som metálico. Não o ranger de engrenagens. Foi um grito humano. Mil vozes, como se as memórias presas ali estivessem sendo forçadas a acordar.
— Ela está abrindo — disse Saen, suando. — Mas exige um preço.
A fenda começou a se alargar.
Rayn caiu de joelhos. O anel em seu dedo queimava. E, diante de seus olhos, imagens começaram a surgir: Kael, diante da mesma porta. Tahlia, ferida ao lado dele. E algo mais... uma sombra com olhos como buracos no tecido da realidade.
E então, uma última visão.
Ele mesmo. Mas não como era agora. Mais velho. Olhos cheios de dor. E... a máscara de Kael em sua mão.
Rayn acordou com um solavanco. O chão tremia. A porta estava entreaberta. Uma brisa fria soprava lá de dentro, carregando um odor de folhas mortas e ferro enferrujado.
— O que você viu? — perguntou Saen, ajudando-o a se levantar.
Rayn não respondeu.
— Rayn?
— Eu vi... a mim mesmo. No lugar de Kael.
Saen o encarou por um segundo. Depois, murmurou:
— Então é verdade. A linha está se repetindo.
— Que linha?
— A de todos os Guardiões. O ciclo que sempre retorna: esperança, poder, queda.
Liora empunhou a adaga.
— E vamos quebrar esse ciclo agora, ou vamos assistir ele acontecer de novo?
Rayn respirou fundo. E passou pela porta.
Dentro, o mundo era diferente. Como se estivessem caminhando por dentro de um sonho.
Colunas de luz suspensas no vazio. Estruturas quebradas flutuando como pedaços de um castelo despedaçado. E no centro, sobre um altar... um fragmento de máscara.
Era metade do rosto de Kael. E pulsava com o mesmo brilho vermelho do anel de Rayn.
— Isso é um foco — disse Saen. — A essência do que ele foi. Ou do que ele se tornou.
Rayn estendeu a mão. Mas antes que tocasse, algo surgiu do escuro.
Uma criatura de corpo translúcido, olhos brancos, e dentes que não pareciam ter fim.
— Um Guardião perdido — murmurou Saen. — Aquele que falhou em fechar a Primeira Brecha.
A criatura rugiu.
Rayn puxou sua espada.
Liora correu ao lado dele.
Saen levantou as mãos para preparar um escudo de luz.
O combate começou.
A criatura era rápida. Se movia como uma lembrança ruim: impossível de agarrar, mas impossível de ignorar.
Rayn rolou para o lado, desviando de garras feitas de névoa sólida. Liora cravou sua adaga no flanco da criatura, mas ela se desfez e se reformou atrás dela.
— Nada está funcionando! — gritou ela.
— Não é uma fera comum! — respondeu Saen. — É feita de arrependimento!
Rayn parou.
Ele se lembrou das palavras do Eco.
"Lembras-te do que nunca soubeste?"
Então fez algo inesperado.
Abaixou a espada.
A criatura parou. Seus olhos vazios fixos nele.
— Você... era como eu — disse Rayn, sem saber se a criatura o entendia. — Falhou. Temeu. Tentou consertar e afundou mais ainda.
A criatura avançou.
Mas Rayn não se moveu.
— Eu não vou mais lutar contra o que sou. Nem contra o que temo.
A criatura parou a centímetros dele.
E... desapareceu.
Restou apenas uma pena negra no ar.
Saen e Liora correram até Rayn. Mas ele só se virou para o altar.
— Agora, eu entendo. A porta não se abre com força. Ela se abre com verdade.
Ele tocou o fragmento da máscara.
E então, tudo se apagou.
Rayn acordou em um campo escuro, rodeado por estrelas mortas. E diante dele... Kael.
Sem máscara. Sem armadura. Apenas um homem. Exausto.
— Então chegou até aqui.
Rayn apertou os punhos.
— O que você quer?
Kael o olhou, cansado.
— Que você não cometa os mesmos erros que eu. Mas temo que seja tarde.
— Por quê?
Kael sorriu. Mas não foi um sorriso de vilão. Foi um de pena.
— Porque às vezes... salvar o mundo exige perdê-lo primeiro.
E desapareceu.
Rayn abriu os olhos. Estava de volta. Com Liora e Saen ao seu lado.
Mas algo havia mudado.
Em sua mão, agora havia não apenas o anel... mas também o fragmento da máscara.
E ele sabia: aquilo era o começo. Ou o fim.
Dependia apenas dele.