Dia da batalha
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Planícies do Norte — Caminho para o Templo em Ruínas
A neve cedia aos poucos. Não pelo calor, mas pela decisão dos passos que vinham de longe. Homens e mulheres, feridos e cansados, ainda marchavam. Cada armadura riscada contava uma história. Cada olhar firme escondia a dor. E à frente de todos, com as rédeas firmes nas mãos, cavalgava Dimitry, Rei do Norte, filho do último rei.
O mapa de Tharion estava marcado com sangue e esperança. Um ponto quase esquecido nos confins do mundo, onde o tempo parecia se dobrar em reverência.
E foi ali, enquanto o vento uivava entre as pedras antigas, que Dimitry viu.
Uma silhueta montada.
Não surgira com estrondo ou clarins.
Estava ali. Sempre estivera.
Adam.
Ou o que dele restava no tecido do mundo.
Cabelos brancos como a neve ao redor. Ombros largos como muralhas. Um urso bordado em negro na capa esvoaçante. Sempre de costas. Sempre à frente.
— Pai…? — Dimitry sussurrou, sem saber se era sonho ou milagre.
A marcha parou por um momento.
Alguns soldados apontaram. Outros caíram de joelhos. Havia quem chorasse, quem apenas encarasse com olhos arregalados — como se o mundo estivesse tentando se lembrar de algo esquecido.
Às vezes era só uma sombra sobre a névoa.
Às vezes, nítido como no dia da coroação.
Mas nunca, jamais, olhava para trás.
Apenas seguia… cavalgando rumo ao templo.
E Dimitry entendeu. Não era só memória. Nem espírito.
Era a vontade dele. O juramento de um rei que jamais abandonaria seu povo. Nem mesmo após a morte.
Ele se pôs a cavalo, ergueu a espada e gritou:
— Sigam! O Norte marcha com os antigos reis!
— Sigam! Pois o que é morto em corpo, vive em legado!
— Por Adam! Por Moira! Pelo último nascer da Fênix!
E o exército rugiu.
A terra tremeu.
E o templo, há muito esquecido, começou a despertar…
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Mundo entre Mundos — O Coração da Criação
A névoa gritava.
Cada passo dos Ataxas rasgava o ar, como lâminas afiadas rasgam seda. Erizy vinha à frente, deformado, os olhos sangrando sombra, a voz um trovão abafado. Ele já não era mais carne — era ruína, era rancor encarnado.
E no centro de tudo, Tharion segurava o Sinete.
O artefato brilhava de maneira irregular — como um coração desesperado. Uma frequência inaudível se espalhava pelo tecido do mundo. Mas Ishelan, o devorador oculto nos véus, ouvia. E gritava.
Um urro agudo e bestial reverberou entre os planos.
O Sinete perturbava o monstro.
Cada batida era como navalha em sua consciência.
Cada brilho, como luz em olhos que só conheciam trevas.
Erizy caiu de joelhos, cobrindo os ouvidos.
— Façam parar! — berrou, sua voz soando como metal em ruína.
Mas o Sinete não parava.
Porque Tharion lembrava.
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A Luz do Coração — Encontro com Titos
Um sussurro percorreu os véus.
E então ele o viu.
Titos.
Pequeno, de olhos grandes e cabelo como fogo suave. Vestia uma túnica suja, os pés machucados, mas caminhava com dignidade, com uma luz tão pura que até a névoa hesitava em tocá-lo.
Tharion caiu de joelhos.
As mãos tremiam. O coração parecia derreter dentro do peito.
— Meu… meu filho…
Titos correu até ele.
E quando os braços se encontraram, uma luz emergiu do peito de Tharion, como se o mundo inteiro brilhasse por um instante só.
As sombras recularam.
Ishelan uivou de dor.
Outras crianças saíram de trás das colunas partidas do mundo. Olhos famintos, mãos pequenas, feridas e trêmulas. Mas ao verem Titos, seguiram-no sem hesitar.
A luz dele afastava os monstros.
— Papai… — Titos sussurrou. — A gente quer ir pra casa.
Tharion o abraçou. Chorou em silêncio. E beijou sua testa.
— Vá, meu sol. Você já salvou mais do que eu jamais poderia.
Ergueu o Sinete. O véu se abriu.
O Erudito aguardava do outro lado, braços estendidos.
— Corram! — Tharion gritou.
As crianças passaram por ele, uma a uma, como sementes cruzando o vento.
E Titos foi o último. Antes de sumir no portal, olhou para o pai:
— Você vem depois, né?
Tharion sorriu entre as lágrimas.
— Sempre.
E o véu se fechou.
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Orren, Aelys e Lysar se posicionaram ao redor dele.
A tormenta se reerguia.
Erizy voltou a caminhar, agora com o olhar ainda mais insano.
Ishelan rugia nos céus despedaçados.
Tharion pôs a mão sobre o peito.
A luz de Titos ainda ardia ali.
— Agora… vamos acabar com isso.
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– O Limiar da Ruína
A areia suspensa se contorcia em redemoinhos de sombra. A realidade já não obedecia às regras da natureza — era como se tudo dançasse ao redor de uma força maligna prestes a se libertar.
Ishelan surgiu primeiro.
O corpo não tinha forma fixa — ora era uma criatura de asas carbonizadas, ora uma presença imensa feita de olhos que choravam trevas e presas que tilintavam de fome. Atrás dele, Erizy, com sua nova pele negra cravejada de runas vivas, sorria com a confiança de quem já se via vitorioso.
— Ora, ora… — zombou Erizy, caminhando com passos preguiçosos. — Então é aqui que o herói se esconde… com crianças e fantasmas.
Tharion não respondeu.
O Sinete em sua mão vibrava, e quando Ishelan avançou com um rugido de mil ecos, Tharion ergueu o artefato.
Uma onda de luz explodiu.
Ishelan foi lançado para trás, o urro da dor ecoando entre mundos.
— Não por muito tempo — murmurou Tharion, os olhos cheios de determinação.
Erizy não pareceu se incomodar. Passou a mão pelos cabelos, ajeitou a armadura e sorriu de novo.
— E a sua doce princesa? — cuspiu o veneno com desdém. — Fugiu para o alto do palácio dos ursos? Ou ainda está lambendo as feridas daquele corpo que foi meu?
A frase atravessou o ar como veneno.
Tharion não respondeu com palavras.
A resposta veio em aço.
Num único salto, cruzou o campo instável e acertou um soco tão potente no rosto de Erizy que o som ecoou como trovão dentro de uma catedral abandonada.
— NÃO. FALE. O NOME. DELA. — bradou Tharion, cada palavra um golpe, cada sílaba um impacto que fazia a terra tremer.
Erizy cambaleou, riu… tentou zombar — mas Tharion já estava sobre ele, os punhos como martelos de justiça.
Erizy caiu. E Tharion não parou.
— Por cada lágrima.
— Por cada noite que ela dormiu em silêncio.
— Por cada marca deixada.
— Por cada grito preso na garganta dela…
Tharion o espancava com uma fúria fria, sem gritos, sem hesitação.
Até que Erizy tossiu sangue, a máscara de arrogância desfeita, os olhos arregalados. Pela primeira vez, teve medo.
E então…
BAM!
Um estrondo sacudiu o ar — outros Ataxas haviam cercado o grupo.
Aelys sacou suas espadas de vento, girando com precisão mortal.
Orren, com sua lança prateada, se posicionou ao lado de Lysar, que já vestia sua armadura estelar, olhos brilhando como safiras vivas.
A batalha irrompia ao redor.
Mas no centro, só restavam Tharion e Erizy.
Tharion se ergueu, o punho ainda cerrado, e cuspiu ao lado.
— Você nunca mais vai encostar nela.
E então ergueu o Sinete mais uma vez…
O mundo, por um instante, pareceu prender a respiração.
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De volta ao mundo dos guardiões.
O chão tremia sob os pés de Tharion.
O Sinete em sua mão queimava como brasa viva, abrindo um portal entre realidades. As bordas do mundo se despedaçavam como vidro ao som de um trovão silencioso.
Atrás dele, Orren sangrava, mas erguia sua lança. Aelys tinha o olhar firme mesmo com a armadura lascada. Lyzar, manchada de fuligem, mantinha-se entre eles como uma estrela caída em guerra.
E Ishelan urrava. Sua forma oscilava entre besta alada e rei caído, um horror antigo agora materializando-se em carne.
Tharion se virou lentamente para Erizy, que mal conseguia ficar de pé, cuspindo sangue negro, apoiado nos joelhos. Ainda sorria — mas já não havia orgulho em seu rosto.
Tharion caminhou até ele.
Curvou-se, os olhos flamejando.
E disse apenas:
— Você não.
O soco veio como uma sentença.
A mandíbula de Erizy estalou com o impacto. Ele caiu, apagado, como uma sombra rejeitada pela luz.
Então, Tharion voltou-se para o véu já em ruína.
— Segurem-se. Vamos terminar isso… onde tudo começou.
O Sinete brilhou como um sol ao contrário.
O mundo entre mundos implodiu — e eles foram lançados para o mundo real.
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Ruínas do Templo – Reino do Norte
Dimitry estava lá.
Em pé sobre os degraus quebrados de pedra sagrada.
Ao redor, o exército do Norte.
Armas em punho, bandeiras ao vento, olhares em chamas.
Adam marchava à frente, silhueta de luz montada num cavalo branco, como uma memória que ganhava forma. O povo sentia — ele os guiava. A chama dos nefilins ainda ardia.
O céu explodiu em luz.
Tharion e os outros surgiram em meio a uma tempestade de poder, e junto deles… Ishelan.
Agora físico. Gigante. Um titã de carne e abismo.
O chão rachou sob seus pés. Seus olhos, duas luas mortas. As asas negras batiam com o peso de mil maldições.
Mas agora, ele podia ser tocado.
Agora, ele podia sangrar.
Tharion caminhou para a linha de frente.
O Sinete em sua mão cantarolava, um zumbido que fazia o próprio ar se curvar.
— Agora sim, monstro…
— Você vai pagar tudo o que deve.
E então, do alto da colina, Dimitry levantou a espada.
— PELO NORTE! PELA LUZ! PELOS NOSSOS MORTOS!
O exército inteiro rugiu.
A guerra final começou.
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Ruínas do Templo Esquecido — Batalha Final
As muralhas antigas tremiam.
O chão se partia sob os pés dos exércitos.
Dragões mergulhavam dos céus como relâmpagos vivos. Grifos gritavam. Ursos sagrados tombavam e avançavam com fúria cega.
Dimitry estava à frente — armadura negra com detalhes de prata, espada dupla nas mãos, os olhos brilhando com a herança dos nefilins. Ao seu redor, o mundo desabava em guerra, mas ele era o centro — calmo, firme, imparável.
Tharion flutuava alguns palmos acima do solo.
A armadura dourada em seu corpo parecia forjada com a luz da alvorada.
Seus olhos não eram olhos humanos — brilhavam como estrelas furiosas.
E das costas… surgiram asas.
Não asas de pena.
Asas feitas de fogo, ouro e divindade.
Asas que jamais pertenceram à Terra.
A voz dos soldados cessou por um momento.
Um silêncio caiu.
Ishelan, do alto da ruína mais próxima, urrou.
O som não era humano.
Era um trovão negro e mil vozes sussurrando em dor.
— “VOCÊ!” — gritou o sombrio, os olhos fervendo. — “O SINETE É TEU! O CORPO É TEU! ENTÃO EU TAMBÉM SEREI TEU FIM!”
Tharion encarou-o, as asas abertas como muralhas flamejantes.
— “Vem então, criatura do vazio.”
— “Vem conhecer a luz que tua sombra jamais poderá apagar.”
E Ishelan veio. Como uma tempestade.
O impacto rachou o chão. As montanhas próximas estremeceram.
Mas Tharion não recuou.
Ele era o fogo. O herdeiro. O Rei relutante que agora vestia o destino.
E enquanto os exércitos rugiam e o céu explodia, o verdadeiro duelo começava.
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O trovão cortava o céu sem nuvens.
A lâmina de Tharion colidia com o corpo de Ishelan e, a cada impacto, um raio ecoava pelos vales.
A guerra rugia ao redor — mas os Guardiões estavam sendo vencidos.
Ursos tombavam em sangue.
Dragões despencavam como constelações caídas.
Grifos giravam no ar feridos.
O inimigo era vasto. Antigo. Alimentado pelo medo.
Tharion grunhia, lutando com cada gota de sua alma, as asas douradas estilhaçando sombras, mas mesmo ele... mesmo ele sentia o peso do fim se aproximando.
Ishelan ria.
— “És luz... mas até o sol se apaga, herdeiro.”
E então...
O tempo parou.
O chão tremeu.
As nuvens se abriram.
O ar se aqueceu como se o mundo respirasse pela última vez.
E veio a voz.
Baixa. Firme. Ancestral.
— “Δράκων, εγείρεσθε.”
(“Dragões, erguei-vos.”)
Símbolos flutuaram no ar, em espirais de luz e fogo — letras antigas, vivas, ardendo como brasas.
No alto da colina, entre colunas despedaçadas, ela surgiu.
Kátyra.
Vestida com um manto de escamas rúnicas.
Seus olhos eram brasas.
Os cabelos — uma cascata de fogo prateado.
A pele — incandescente.
E com os braços abertos, ela urrou:
— “Εγώ είμαι η φωτιά! Εγώ είμαι η τελευταία φλόγα!”
(“Eu sou o fogo! Eu sou a última chama!”)
O feitiço explodiu.
Um anel de poder saiu dela em todas as direções, limpando o campo de batalha com uma onda de calor puro.
As sombras recuaram.
As feras gritaram.
E Ishelan... pela primeira vez... deu um passo atrás.
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